sábado, 31 de dezembro de 2011

O Ano Novo


  HISTÓRIAS
  O Ano Novo
    "The New Year"

Volto aqui a Roma depois de 11 dias intensos na frente brasileira. A descrição detalhada destes últimos dias serviria para desiludir algum espírito ingênuo e otimista capaz de julgar ser a vida do correspondente de guerra na Itália ou em qualquer outro front do mundo, um paraíso movimentado e colorido. Não quero me prolongar muito a respeito, mas quando o leitor souber que entre o dia 25 de dezembro último e este 2 de janeiro só me foi possível tomar um banho, apressado e econômico, poderá por si mesmo tirar outras conclusões a propósito da vida que levamos aqui. Mas é lógico que isto não acontece somente com os correspondentes, obrigados a andar de um lado para o outro, sem pouso certo para dormir ou para comer. A guerra é, na sua totalidade, uma coisa incômoda, incômoda para o general, para o coronel, para o pracinha ou para o correspondente.

As noites de 26, 27, e 28 haviam sido terríveis. Sabíamos mais ou menos o que estava acontecendo, porque o coronel havia chamado todos nós e, diante de um mapa minucioso, explicado as ultimas manobras e intenções do inimigo. As últimas informações de partigiani chegadas ao 5º exército revelavam a marcha de quatro ou cinco divisões nazi-fascistas do norte italiano para o sul, e tudo mostrava que os alemães, à semelhança do que estava fazendo na frente do Ocidente europeu, tencionavam dar inicio a uma grande ofensiva até o porto de Livorno.
A investida nazista contra uma divisão negra norte-americana e a reconquista de Barga, num setor que meses atrás estava sendo defendido pelos brasileiros, não queria dizer outra coisa. A verdade, porém, é que tudo acabou bem, como devem ter lido nas noticias telegráficas das agências.

Barga foi novamente libertada pelos aliados e os nazistas empurrados para além de suas linhas anteriores. Entre a investida nazista e o contra ataque aliado, que libertou, a pequena cidade medieval esteve perto de dois dias nas mãos dos alemães. O tempo foi pouco, mas o suficiente para que os tedescos cometessem contra a população algumas de suas típicas barbaridades. Homens e rapazes válidos foram mandados para o trabalho forçado no norte italiano, alguns elementos partigiani presos e torturados. 

Sigo amanhã cedo para lá, juntamente com alguns outros correspondentes estrangeiros, o que significa dizer que dentro de poucas horas a história da curta ocupação de Barga poderá ser revelada em todos os seus detalhes.

A notícia de que os alemães estavam avançando na Itália lançou o pânico nas populações vizinhas à frente de batalha. Os civis nos seguravam nas ruas para saber das últimas notícias. Um medo angustioso e desesperado estava estampado nos rostos aflitos que nos indagavam se era verdade que os tedescos estavam vindo de volta. Por alguns instantes, nas estradas e caminhos da frente noroeste aliada, podia-se contemplar um dos espetáculos mais comuns desta guerra: filas de civis, com pertences às costas, fugindo de um inimigo que parecia retornar com a mesma fúria e implacabilidade dos seus primeiros avanços, naqueles distantes dias em que a guerra era uma coisa sua.
Barga, nos dias atuais
Lembrei-me, então, de muitos dos muros pichados nas cidades e povoados livres dos nazistas, e fiquei a imaginar comigo mesmo qual seria a reação das SS ou da Gestapo diante de frases como estas: “Viva a Inglaterra!” “Viva a Rússia!”, “Morte aos fascistas!”. “Os tedescos precisam ser eliminados!”. “A América toda-poderosa nos salvará!”. Possivelmente, os muros pichados de Barga terão justificado os dois dias de crueldade nazistas, se é que o alemão necessita de qualquer justificativa para praticar os seus crimes.

A revelação de que os tedescos foram derrotados e estavam fugindo para os seus montes e casamatas nos chegou numa madrugada, quando tentávamos adormecer sob o tiroteio que visava o quartel avançado das tropas brasileiras. Voltamos a descer pelos Apeninos, até nosso Quartel-general Avançado, e o último dia de 1944 nos encontrou aboletados num jipe a caminho do que Roma representava para nós, esgotados por noites intranquilas e atormentados pela neve e pela poeira de mil caminhos: um bom banho quente, uma cama macia e confortável, uma luz regular com a qual é possível ler alguma coisa, informações e noticias em dia do mundo.

Mas o triste é que vim encontrar o Hotel de la Ville, “o lar dos correspondentes”, como explica uma de suas tabuletas na porta da frente, inteiramente tomado, sem um único quarto para o "povero brasiliano rovinato".
Tenho que passar esta última noite de 1944 no quarto de um colega neozelandês, comprido e falador, pois que só amanhã o aflito gerente me conseguirá uma cama e um banheiro meus. Esfrego o rosto apressado, e ainda com os olhos ardendo de poeira vou lá para baixo, para o bar, onde uma multidão complexa e diferente canta e dança como componentes de uma só família. O ano de 1945 me encontra cochilando numa poltrona, defronte uma lareira apagada e diante de um conhaque vermelho e sem gosto. Foram as badaladas do Big Bem, irradiadas de Londres para os correspondentes do Hotel de la Ville, que me despertaram, e aqui eu faço votos para que nunca mais aconteça, em toda a minha vida, uma outra passagem de ano semelhante.

Não devo esquecer também o gesto espontâneo e gentil da bela correspondente sul-africana (ela se chama Norinha). Meia noite, ela me bateu no ombro e ergueu uma taça de champanhe. Suas faces estavam coradas, a luz brilhava nos seus cabelos pretos e sua voz veio até mim como uma coisa inesperada, mas muito desejada:

- Feliz Ano-novo para os brasileiros.

Foi um pequeno instante de felicidade que fico devendo à África do Sul

Texto extraído do livro "O Inverno na Guerra" de Joel Silveira. 
Joel Silveira (1918 - 2007) era jornalista e escritor. Correspondente de guerra pelo Jornal Os Diários Associados, cobriu as ações da FEB na Itália.

Joel Chegou à Itália durante o rigoroso inverno de 1944 e acompanhou a luta dos brasileiros até a tomada de Monte Castelo. Ao narrar sua experiência como correspondente de guerra, declarou: "A guerra é nojenta, e o que ela nos tira (quando não nos tira a vida), nunca mais devolve."

Antes de embarcar para a Itália, Assis Chateaubriand, seu patrão, proprietário do jornal, lhe advertiu: "- Você vá, mas não me morra!"


Vídeo: Eu Estive na Guerra - Joel Silveira


Fonte:
http://books.google.com.br

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